“[as teses de Quesnel] Declaradas e condenadas como falsas, capciosas, de som malévolo, ofensivas aos ouvidos piedosos, escandalosas, perniciosas, precipitadas, prejudiciais à Igreja e à sua prática, insultantes não apenas à Igreja, mas também aos poderes seculares, sediciosas, ímpias, blasfemas, suspeitas de heresia e que cheiram a heresia em si mesmas, e, além disso, favorecendo hereges e heresias, bem como cismas, errôneas, próximas da heresia, muitas vezes condenadas e, finalmente, heréticas, renovando claramente muitas heresias respectivamente e especialmente aquelas contidas nas infames proposições de Jansen, e de fato aceitas no sentido em que foram condenadas.”
Papa Clemente XI, Bula Unigenitus
Em um artigo anterior, discuti as teses condenadas de Lutero na bula “Exsurge Domine”. Hoje, gostaria de abordar uma bula anterior, a “Unigenitus”, promulgada pelo Papa Clemente XI em 1713. Nesta bula, o Papa condena como heréticas 101 teses do teólogo jansenista Pasquier Quesnel. Quero chamar a atenção especialmente para as teses de número 79, 80, 81, 84 e 85, que tratam sobre a liberdade de leitura das Sagradas Escrituras.
79. É útil e necessário em todo tempo, em todo lugar e para todo gênero de pessoas estudar e conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura.
80. A leitura da Sagrada Escritura é para todos.
81. A obscuridade santa da Palavra de Deus não é para os leigos razão de dispensar-se da sua leitura.
84. Arrebatar das mãos dos cristãos o Novo Testamento ou mantê-lo fechado, tirando-lhes os meios de compreendê-lo, é fechar-lhes a boca de Cristo.
85. Proibir os cristãos de ler a Sagrada Escritura, especialmente os evangelhos, é proibir o uso de luz para os filhos da luz, e levá-los a sofrer uma espécie de excomunhão.
Essas quatro afirmações foram consideradas heréticas. Ou seja, de maneira geral, o Papa considerava que a leitura das Sagradas Escrituras não deveria ser acessível para todos. Alguns católicos modernos se surpreenderiam com essa afirmação, pois estão acostumados a serem incentivados a ler as Escrituras. Já os tradicionalistas podem até se orgulhar da condenação papal, pois, assim como ele, pensam que a Bíblia é um livro incompreensível, dispensam sua leitura e acusam aqueles que se acham no direito de lê-la de potencialmente gerarem heresias. Às vezes, o desconhecimento teológico da doutrina reformada é tamanho que estes acreditam que “livre exame” se trata de ter uma Bíblia em casa para inventar a doutrina que lhes parecer mais correta em nome do Espírito santo, confundindo o termo “livre exame” por “livre interpretação”. Por incrível que pareça, esse espantalho criado nos dias da reforma continua famoso nos dias de hoje por pessoas pouco educadas ou mal intencionadas.
Atualmente, a igreja afirma:
133. A Igreja «exorta com ardor e insistência todos os fiéis […] a que aprendam “a sublime ciência de Jesus Cristo” (Fl. 3, 8) na leitura frequente da Sagrada Escritura. Porque “a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo”» (114). Fonte: https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p1s1c2_50-141_po.html#:~:text=133.,Cristo%22%C2%BB%20(114).](https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p1s1c2_50-141_po.html#:~:text=133.,Cristo%22%C2%BB%20%28114%29.)
Mas antigamente:
O Pintor italiano, Riccardo Perucolo foi condenado pela Inquisição, dentre os motivos está: “As acusações basearam-se não só nos relatos de alguns concidadãos, mas também na descoberta na casa do pintor de alguns livros suspeitos, incluindo um Novo testamento em vulgar, das epístolas de S. Paulo em vulgar”
Fonte: https://www.treccani.it/enciclopedia/riccardo-perucolo_(Dizionario-Biografico)/
Decreto do Concílio de Toulouse, 1229 EC: “Proibimos também que os leigos tenham permissão para ter os livros do Antigo ou do Novo Testamento; mas proibimos estritamente que tenham qualquer tradução desses livros.”
Concílio de Tarragona, 1234 d.C: “Ninguém pode possuir os livros do Antigo e do Novo Testamento em língua românica, e se alguém os possuir, deverá entregá-los ao bispo local dentro de oito dias após a promulgação deste decreto, para que sejam queimados…”
Além das proibições de traduções reformadas no concílio de trento e das condenações de Tyndale e Wycliffe.
Na igreja católica antiga, que pouco tinha a ver com a romana, Orígenes já alertava contra as declarações de Celso, que acusava as escrituras de terem sentido obscuro e subjetivo:
“As pessoas de inteligência que desejam estudar a Escritura também podem descobrir o seu significado por si mesmas.”
(Contra Celso Livro VII Cap. 11)
“As verdades mais profundas são descobertas por aqueles que sabem como ascender de uma fé simples e investigar o significado que subjaz nas Escrituras divinas, conforme as admoestações de Jesus, que disse ‘Examinai as Escrituras’, e o desejo de Paulo, que ensinou que ‘devemos saber como responder a todo o homem’, sim, e também de quem disse ‘estai sempre preparados para dar uma resposta a todo aquele que vos pedir a razão da fé que há em vós.”
(Contra Celso Livro III Cap. 33)